
No outro dia, via o especial de comédia de Seth Meyers quando ele fez uma piada sobre pedofilia. Não teve graça (ainda estou à espera de uma que tenha), mas deu-me logo muito que pensar. Ele dizia que «pedófilo» é uma palavra demasiado fancy. E está coberto de razão. («Pedofilia» vem do latim e significa «ter amor às crianças», tal como «filosofia» significa «ter amor ao saber».) Mas o meu problema com essa palavra não é ela ser fancy. É usarmo-la quase sempre no sentido errado.
A pedofilia, como outras parafilias (desvios problemáticos da sexualidade dita normal, tais como alimentar sentimentos/actos eróticos para com animais ou cadáveres) é muito rara (e nem todos os verdadeiros pedófilos agem em relação aos seus impulsos; muitos procuram tratamento). Já a violência sexual para com crianças é muito comum — mundialmente, uma em cada cinco meninas e um em cada dez meninos sofrem algum tipo de agressão deste tipo (fora os casos de que não há registo) —, mas a pedofilia propriamente dita, a atracção por corpos pré-pubescentes é relativamente pouco comum.*
Então, quem são estas pessoas (na esmagadora maioria homens, embora convenha não esquecer que também existem agressoras) que se servem de crianças para o seu prazer sexual? São predadores oportunistas. Atacam crianças porque podem, porque elas estão à mão, porque é fácil baralhá-las, porque é mais fácil seduzi-las e silenciá-las.
Estes professores, padres, pais, padrastos, etc., não têm necessariamente apetite por corpos muito jovens, têm é acesso. A maioria deles tem, já teve ou gostaria de ter relações sexuais com adultos. Simplesmente, as crianças estão vulneráveis e não é preciso pedir-lhes autorização, basta forçá-las ou manipulá-las.
Assim, chamar pedófilos a todos os predadores sexuais que cometem crimes contra crianças é como chamar cleptomaníacos a todos os ladrões.
Tal como não gosto da palavra «pedófilo» por ser muito equívoca neste sentido, também não me agrada nada a expressão «abuso sexual».
Uma criança não é «abusada» (empréstimo imprestável do inglês), ela é violentada/agredida/traumatizada sexualmente. Um violador não «abusa», como quem come rebuçados a mais, comete um crime gravíssimo. Não há um «abuso» — seria abuso de quê? de confiança? da sorte? —, há um acto hediondo que rouba para sempre a inocência àquela vítima.
Termos como pedófilo e abuso sexual são muito ligeiros — e profundamente errados — para falar de algo para o qual quase não há palavras, mas temos de as encontrar. Sob pena de, como sociedade, continuarmos a desvalorizar actos tão horríveis. O que, em si mesmo, é outra injustiça, outra imoralidade, outro crime por cumplicidade.
«Predador», «agressor sexual», «violador oportunista», «criminoso particularmente pervertido».
«Agressão sexual a menores», «violência sexual agravada por ser cometida com vítima infantil», «crime sexual contra crianças», «exploração sexual de vítimas especialmente vulneráveis».
Ainda parecem termos insuficientes, mas já é um começo.
Um dos meus desejos para 2020 é que os livros de estilo dos meios de comunicação social comecem a integrar esta mudança de vocabulário.
*O género teen existe em força na pornografia, mas talvez tenha mais que ver com o facto de as sociedades idolatrarem a juventude e de quase todas as fantasias sexuais namorarem o proibido. (Nada contra os pensamentos fantasiosos, tudo contra os actos criminosos.) Curiosamente, outra categoria muito popular na pornografia é MILF, sendo mom uma palavra-chave muitíssimo pesquisada.
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Um pensamento sobre “A importância das palavras certas”