
Na semana passada, escrevi sobre a importância de darmos os nomes certos às coisas – um agressor sexual de crianças não é um «abusador» – para podermos vê-las na devida proporção. Hoje escreverei sobre a importância de darmos às crianças as ferramentas certas para se poderem defender melhor de possíveis agressões.
Cresci na última década e meia do século XX, mas em minha casa falava-se de sexualidade como na Idade Média – ou seja, não falava. O tema era tabu e qualquer infracção era alvo de censura. Além disso, a palavra dos adultos era a única que contava – criança não tinha voz ou grande credibilidade, criança tinha de obedecer sem questionar a autoridade. Não tenho dúvidas de que isto me deixou mais vulnerável. E é (também) por isso que sou acérrima defensora da educação sexual nas escolas. Porque muitas famílias (a maioria?) não sabem como falar de sexualidade, limites, direitos, prazer e manipulação, deixando os seus elementos mais vulneráveis sem meios para se defender.
Em Portugal, a educação para a sexualidade e para os afectos, nas escolas, dá-se tarde e mal. Costuma ser enfiada no sétimo ou oitavo ano, entre a fotossíntese e a reprodução dos peixes, se o professor de Ciências estiver disposto a dar uma hora por semana do seu tempo para leccionar o módulo.
Como não me parece que esse cenário vá mudar tão cedo, infelizmente (ainda somos uma sociedade conservadora, os professores são uma classe envelhecida e maltratada, ninguém gere bem as prioridades, etc.), deixo aqui umas dicas para que, em casa, essa educação para a prevenção dos abusos sexuais se faça de modo melhor – inspiradas num fantástico artigo do The New York Times. Porque falar de sexualidade (incluindo deste seu lado negro) com crianças não tem de ser difícil.
- Enfatize que o corpo da criança é só dela e que há partes onde mais ninguém pode mexer. Explique o conceito de intimidade e que, se alguém lhe tocar nas partes íntimas, deve avisar logo a mãe/o pai/etc.
- Explique que a maioria das pessoas é boa, mas que há adultos maus, que podem tentar aproveitar-se de crianças.
- Explique a diferença entre guardar um segredo e não contar algo para fazer uma surpresa. As surpresas são reveladas e deixam as pessoas felizes. Um segredo que não pode ser contado não é bom e pode fazer-nos sentir sujos, confusos ou tristes.
- Dê o exemplo falando quotidianamente dos seus sentimentos e sensações. Isso convidará a criança a falar dos seus próprios sentimentos de raiva, confusão, felicidade e tristeza.
- Mostre-se receptivo a perguntas sobre sexualidade. Não censure a criança se ela tiver curiosidade pelo tema. Cultive a abertura em vez da vergonha.
- Dê autonomia à criança para que ela possa dizer «não» e exprimir-se abertamente. Incentive a honestidade emocional e mostre que os seus limites físicos são respeitados. Se a criança demonstra não querer um abraço de um familiar ou um beijinho de um desconhecido, não a obrigue a aceitá-los.
- Diga e mostre à criança que acreditará nela, incondicionalmente, e que ela nunca ficará em apuros se partilhar coisas delicadas consigo.
- Ensine à criança que os seus sentimentos são importantes e que merecem respeito. Ensine-a a confiar no seu próprio instinto.
- Seja claro no seu discurso e use as palavras certas para designar a anatomia. As crianças podem não perceber metáforas ou eufemismos.
Seguir estes conselhos deixa-o desconfortável? Talvez não lhe apeteça falar de partes íntimas e predadores a uma criança pequena… Mas prefere um desconforto seu, passageiro, ou correr riscos desnecessários? É que uma criança que não tem vocabulário para descrever o que lhe é feito, que não consegue distinguir o certo do errado nem sabe como pedir ajuda torna-se um alvo ideal para um agressor. Quanto mais cedo começar a prevenção, melhor.
(E estas são lições que a criança levará consigo para o resto da vida. Na adolescência e na idade adulta, também precisamos de saber distinguir entre quem nos quer bem e quem quer tirar partido de nós, de saber identificar e impor limites e de viver a sexualidade com saúde, responsabilidade e sem vergonha.)
Photo by Annie Spratt on Unsplash
Que texto maravilhoso e necessário! Aqui no Brasil não é muito diferente, e estamos caminhando para um retrocesso ainda maior graças ao novo governo extremamente conservador. Vou compartilhar nas minhas redes sociais!
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