Separar o trigo do joio

Primeiro foi o medo.

O estrangeiro é que transporta. As lojas vazias. Ponham as bandeiras nas janelas, engrandeçam os portugueses. 900 anos de história e sobrevivemos a tudo.

E o vírus a galgar fronteiras, pouco importado com a sinalização dessa grande sorte geográfica que é jogar à nacionalidade.

As pessoas distanciavam-se um metro, dois metros. Deixámos de nos abraçar.

Os autocarros cada vez com menos gente, excepto, claro, os da madrugada da Linha de Sintra.

Porque estamos todos na mesma água, mas os nossos barcos são diferentes. Há quem tenha um iate com arca de refrigeração e comida para um mês, garrafa de champagne bem fresquinha. Há quem tenha um barco a remos e todos os dias tenha de mergulhar a cana e esperar que de lá saia um peixe. Noutros dias come uma alga que lá apareceu a boiar.

Como se quem ganha o Salário Mínimo Nacional conseguisse, sem apoios, ponderar sequer a hipótese de uma quarentena contabilizando o diminuir de rendimentos a cada dia que passa e vendo o armário da cozinha a esvaziar. E os filhos com fome. E a renda a cair na conta.

Enquanto o Estado diz: “distanciamento social, quarentena voluntária, saiam de casa só para o essencial!” E numa pequena nota que não pode passar despercebida reafirmava: “trabalhar é essencial. Mas tu, tu que tens de sair de casa todos os dias para ir trabalhar, TU és o grande responsável e transmissor do vírus.”

Os vizinhos a olhar de lado para quem sai de manhã em busca do ganha pão. Consolida filho, és um bom menino. O Estado está orgulhoso de ti.

“A escolha é deles”. Contracção da preposição e da humanidade: “(d)eles” que nós nem sabemos bem quem são, mas que andam aí a contaminar-nos a todos. “(D)eles”, esses outros que não nós, que estamos em casa, e a quem o ordenadozinho cai todos os meses enquanto nem sequer teletrabalho fazemos: “Prefiro estar vivo de barriga vazia que morto de barriga cheia”. Mas isso não é verdade, não é filho? Porque abres o frigorífico e ele está recheado. Porque com o teu ordenadozinho mandas vir comida que esses que criticas te trazem para poderes ficar em recolhimento. Ou vais ao supermercado que esses que criticas repõem, carregam. “(D)eles” que são “livres de escolher a forma como querem morrer”. (Enquanto te servem. “Te”. Pronome pessoal e individual. A tià tua pessoa.)

Depois foi o apontar de dedo: as pessoas que não ficam em casa. Como se para toda a gente a palavra ‘Casa’ tivesse o mesmo significado de protecção. Como se todas as casas fossem iguais à tua. Como se ‘Casa’ fosse algo que toda a gente tem.

Depois o “estado de emergência” que te tirou o direito à greve, à manifestação, à reunião e à resistência. Que falta de apego que tens à liberdade… O “estado musculado” que agora já te deixa (em alguns sítios até já começou a pedir!) ser polícia dos vizinhos. Olha, o vendedor de fruta. Não está a cumprir o isolamento. Olha, demorou mais 15 minutos a passear o cão. Não está a cumprir o isolamento. Olha, o vizinho espirrou.

“Há quem mande obedecer há quem disso se encarregue”. E lá vais tu, cidadãozinho pequenino, pegar no telefone e delatar o teu semelhante que já nem vês, porque a primeira coisa que o vírus te matou foi a humanidade.

Gritas: “É uma guerra! Às armas, Às armas”, mas já perdeste a tua.

Tu que não percebeste que a maior arma desta guerra é a solidariedade, a rede de afectos, o apoio mútuo, a auto-organização.

Tu que podes ajudar os mais vulneráveis, mas te fechaste na tua bolha de privilégio.

Tu que “estás orgulhosamente só”.

Ainda não percebeste se calhar, mas quando isto acabar lembra-te: não foram as pessoas nos iates que nos salvaram. Foi o pessoal médico, as “empregadas de limpeza (essa profissão tão feminina)”, as mercearias, quem se manteve a trabalhar nos supermercados, o pessoal de higiene urbana, aqueles que estenderam medidas de apoio seja via instituições formais, seja auto-organização voluntária de vizinhos, amigos, desconhecidos…

Quando isto acabar eu estarei do lado deles e delas. E darei a mão aos meus vizinhos. E ficarei profundamente grata a todos e todas que cederam o seu tempo para ajudar a sua comunidade, os conhecidos e desconhecidos. A ti desejo-te nenhum mal, apenas a consciência do mal que fizeste e das portas que não abriste: “O fascismo é uma minhoca, que se infiltra na maçã, ou vem com botas cardadas, ou com pézinhos de lã”.

photo of a woman holding red carnation flower
Photo by Dominika Roseclay on Pexels.com

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