Há uns tempos atrás, deixei de beber. Mais ou menos. Para definir a minha relação com o álcool: estava algures no espectro entre ter ficado realmente espantada quando uma amiga comentou que costumava ter uma garrafa de tinto para beber em casa (ela vivia sozinha – se vivesse com alguém não me teria espantado, porquê?; e depois de a ter ouvido, mas só depois, passei a comprar vinho para beber na casa onde eu também vivo sozinha) e ter na minha posse, oferta de dois amigos que não se conhecem entre si, duas placas cómicas com uma imagem de dona de casa retro e a frase «Estou a fazer a dieta do gin tónico, já perdi dois dias» (cheguei a perder horas, quando bebia, durante as quais, garantem-me, tinha imensa graça e toda a gente se ria muito, mas não tenho forma de o comprovar; nunca perdi dias, que me lembre). Portanto, um consumo não problemático. Minimamente incómodo e dispendioso. No big deal.
Um dia como outro qualquer, fui jantar com umas amigas. Vim embora cedo, porque no dia seguinte tinha um seminário com uma autora que admiro muito. Seria por termos menos tempo (estamos todas na idade em que, se uma diz «vou andando», dá origem a uma debandada) que nos aproximámos (ou superámos?) a média de uma garrafa por pessoa que se tinha vindo a tornar habitual nos jantares? No dia seguinte, indecentemente cedo para um fim-de-semana, acordei a sentir-me feita de madeira: rígida, pesada, com um castor a roer-me a cabeça e térmitas a devorar-me os músculos. Bebi água, chá vermelho, comi fritos, fui ao seminário. Da névoa dolorosa daquela manhã destaca-se a autora, monja budista, a falar da natureza da dor. E o lampejar, dentro de mim, da clara ideia: mas que estupidez! Tomada de consciência básica, na verdade: tinha ansiado tanto por aquele dia, poupado tempo e dinheiro para lá estar, para agora estar a arrastar a atenção e a consciência pelo lamaçal da ressaca, em vez de estar a desfrutar confortavel e plenamente do momento. Arquivei a experiência de beber na categoria de coisas para que já não tenho idade/ paciência, e comprometi-me a não beber mais de um ou dois copos por dia, dali em diante. (Não foi uma decisão sem consequências: quando uma mulher em idade reprodutiva diz que não vai beber, depara-se com silêncios e sorrisos de quem está claramente já a pensar em botinhas e casaquinhos muito fofos; quando essa mulher está mais perto do limite da idade reprodutiva e sempre afirmou não querer ser mãe, como é o meu caso, os sorrisos dão lugar a semi-sorrisos de inquietação. E quando uma mulher diz que não vai beber *mais*, depois de um copo, isso gera uma curiosidade médica dificilmente contida. Mas a palavra «azia» é uma panaceia de explicações, percebi!)
Mas algo neste arquivar não me convencia por inteiro, até porque a idade e a paciência nunca foram recursos cuja escassez ou excesso alguma vez me tenham impedido de fazer seja o que for. Nunca senti falta da embriaguez, seja da ligeira descontração e desinibição do estar um pouco «tocada» ou do estado de consciência realmente alterado e da sensação de invencibilidade que outrora me permitiram fazer coisas dignas de Jacques Tati ou Leitão de Barros (mais Leitão de Barros). Então, porque me irritava a embriaguez dos outros? É verdade que tenho o azar de ser uma daquelas pessoas que parece simpática a bêbedos; em quase todos os sítios onde se bebe, as pessoas profundamente narças olham à volta da sala, vêem-me e decidem: «sim, vou contar-lhe a *ela* a história da minha vida/ a minha teoria da conspiração/ o enredo de uma série que não existe», e fazem-no. Mas a irritação que sentia era mais do que isso; não era com a chatice da embriaguez individual. Era com aquele fenómeno especificamente genderizado de celebrar o próprio ato de beber, e em excesso, entre mulheres. (E nem sequer podia beber para me passar essa irritação, hahaha).
Felizmente, vivemos num momento em que mulheres muito inteligentes articulam coisas que outras mulheres, igualmente inteligentes mas talvez mais alienadas pela opressão patriarcal, estão a sentir. Foi o caso de Enjoli, um artigo de Kristi Coulter que me fez uma espécie de peeling ao cérebro, mas no melhor sentido possível.
Coulter deixou mesmo-mesmo de beber e, na sobriedade, descobriu a mesma irritação que eu senti e não conseguia explicar. O que me irritava (e desde que li o artigo deixou de me irritar) não era ver as minhas amigas beber, ou estar sóbria quando elas não estão (porque a inteligência e o humor delas são embriagantes por si só); o que me irritava era ouvi-las falar de beber, ansiar por beber, comprar e trazer performativamente garrafas de vinho, fazer piadas sobre o quanto íamos/ tínhamos/ estávamos a beber, celebrar o beber. O que me irritava era que quiséssemos tanto beber. Que *precisássemos* de beber. Porque é que havíamos de precisar de beber? Afinal:
«Is it really that hard, being a First World woman? Is it really so tough to have the career and the spouse and the pets and the herb garden and the core strengthening and the oh-I-just-woke-up-like-this makeup and the face injections and the Uber driver who might possibly be a rapist? Is it so hard to work ten hours for your rightful 77% of a salary, walk home past a drunk who invites you to suck his cock, and turn on the TV to hear the men who run this country talk about protecting you from abortion regret by forcing you to grow children inside your body?
I mean, what’s the big deal? Why would anyone want to soften the edges of this glorious reality?»
É uma sensação muito estranha, quando uma mulher que não conhecemos descreve aquilo que estamos a sentir há anos. O que me irritava, nesta retórica de consumo de álcool, era sentir que estas mulheres (eu incluída, até há bem pouco tempo atrás) que diziam como lhes sabia bem beber não estavam realmente a beber, estavam a *ser* embriagadas. A retórica não era de querer beber, mas de precisar de beber. Não era o prazer da bebida, mas a ansiedade pela embriaguez. Estávamos – estamos – a viver num mundo que torna a existência das mulheres uma luta constante e constantemente dolorosa, ao mesmo tempo que lhes vende a anestesia para essa dor – anestesia essa que, impedindo-as de a reconhecer as causas da dor, a eterniza.
Há pouco tempo, conversando com uma amiga sobre o workaholismo acentuado pelo teletrabalho, e sobre a diluição das fronteiras de tempo entre o lazer e a produtividade, comentei algo como: «às vezes parece que andamos a fazer sestas no chão da fábrica entre turnos». Trabalhamos todos numa cadeia cada vez mais sucessiva e apertada de turnos; e, é sabido, à mulheres cabe o segundo (quando não terceiro) turno do trabalho de cuidado e reprodutivo. Se o trabalhador faz a sesta no chão da fábrica, para não roubar tempo ao patrão, a trabalhadora bebe shots ao balcão da cantina, para aguentar o dia de trabalho. E, a esta luz (cruel, bem sei, dramática, bem sei, mas que querem que vos diga?), os jantares com amigas, as girls’ nights, as saídas de gajas, que são, para mim, enquanto mulher, enquanto feminista, enquanto alminha, pão para a boca, passaram a parecer-me, quando «bem regadas», mais isto:

E eu não quero que sejam isto. Não quero sequer que me pareçam isto. Quero que os meus encontros com as minhas amigas sejam o que realmente são, aquilo que os encontros entre mulheres ao longo da história têm sempre sido: espaços de segurança, de conforto, de apoio, de partilha, de celebração e, sim, também de contestação e de resistência. É por isso que não vou ao segundo copo; os meus copos são elas. Somos nós.