– O texto está mal escrito. A jornalista que o escreveu, num post nas redes sociais, escreve mal e adora autopromover-se através de polémicas. Merda. Diz mal do #metoo, diz mal de outras mulheres que acusaram outros homens de assédio, diz mal de todas as mulheres que ela sabe terem sido assediadas por este homem por não terem dito nada, diz mal das mulheres que o protegem, diz mal das mulheres que nunca foram assediadas, diz mal de todas as mulheres que não são ela. Merda merda merda.
– Porque a primeiríssima coisa que te passou pela cabeça foi que o Homem em Questão (HQ) é um velho nojento que baba para cima de tudo o seja mulher (mas vais desconstruir isto mais tarde) e que não tens a certeza certa se ele terá alguma vez feito algo mais grave do que babar, embora tenhas ouvido histórias – muitas histórias – mas que ninguém vai acreditar ou ligar. Sempre que são denunciados casos de violência contra mulheres nas redes sociais e na imprensa, a primeira coisa que te ocorre é que ninguém vai acreditar ou ligar.
– Porque tu teres ouvido histórias – histórias em que ele pousava a mão por cima da mão de uma mulher, ou no fundo das costas, pousava e deixava ficar, pousava e acompanhava de insinuações ou propostas abertamente sexuais, sempre a mulheres (mas mais raparigas) de alguma forma subordinadas ou sobre quem tinha algum poder, mulheres (mas mais raparigas) que poderiam vir a ter (embora não fosse certo que viessem a ter, essa correlação nunca era evidente) problemas se o repudiassem – , tu teres ouvido histórias de mulheres que conheces, em quem confias, cuja opinião respeitas, cuja honestidade e seriedade tomas por garantidas – tu teres ouvido e elas terem falado, isso não vale nada. O que as mulheres contam umas às outras não vale nada. São precisas provas.
– Mas e quando há provas e mesmo assim ninguém acredita e ninguém liga? Porque no país onde vives e trabalhas, no país onde vive e trabalha o HQ, mulheres são sistematicamente mortas pelos companheiros e ex-companheiros, depois de anos de violência física e psicológica, violência essa monitorizada pelas instituições que deveriam servir para as proteger e não protegem; e quando não são mortas, quando por acaso – e sabes bem que é por puro acaso – conseguem sair a tempo de sobreviver, só saem mesmo com a vida, porque continuam a ser perseguidas e assediadas pelos agressores. Se eles chegam a ser julgados, as penas são suspensas, os casos são arquivados. Se a vida da mulher não tem valor, como haveria de ter valor a sua palavra? Ninguém acredita e ninguém liga.
– Se o texto que denuncia o assédio do HQ estivesse bem escrito, alguém podia acreditar ou ligar? É isso que esperas, sempre. Que alguém um dia apresente o caso da violência contra as mulheres de uma forma tão clara, tão incontestável, tão lógica, que consiga narrar para lá de qualquer sombra de ambivalência o que significa viver como mulher sujeita à vontade e ao poder de outros, que consiga explicar a subjugação a quem nunca a conheceu, ou já a conheceu e a esqueceu. Mas isso já foi feito tantas vezes, e ainda assim, ninguém acredita e ninguém liga. A Rebecca Solnit escreveu os textos mais claros, mais legíveis, mais universalmente compreensíveis que existem sobre violência contra as mulheres e cultura da violação. Mas o editor que a publicou cá (um amigo do HQ) é um acérrimo opositor daquilo a que chama a ditadura do politicamente correto. Na revista literária que ele edita, foi publicada uma crónica contra as «virgens ofendidas» – assim designava o cronista as mulheres que vinham a público denunciar assédio e violência sexual, que estariam a aproveitar-se de relações inteiramente consensuais com Senhores Importantes das Artes e Letras (e sorte a delas em as terem tido!) para conseguir fama e atenção. Uma amiga tua, que também trabalha contigo, escreveu uma carta aberta à revista a apontar o erro dessa posição. O editor da Rebecca Solnit e o autor da crónica sobre as virgens ofendidas responderam, ofendidos, acusando-a de censura e puritanismo e também de ser demasiado jovem para entender da vida em geral e da literatura em particular. Um dia destes vais passar pelo editor, no lugar onde ambos trabalham, e vais dizer bom dia. O que vais querer dizer é muito mais longo e complexo do que isso, mas ele não quer ouvir. Já sabe tudo o que quer saber sobre mulheres, sobre violação, sobre violência. Não liga e não acredita.
– A jornalista está muito maquilhada (ou seja, está maquilhada) na foto de perfil das redes, que é a que é reproduzida na imprensa ao lado da notícia. Não queres ir ver os comentários das notícias.
– Um dos comentários diz que nem que ela estivesse a jantar com, sic, as mamas ao léu, isso não lhe dava (ao HQ) o direito de tentar forçar um beijo. Outro diz que se ela lhe tivesse dado um murro nas trombas, como a comentadora já fez, nada teria acontecido. Dois dizem que ela foi corajosa. Um diz que o assédio sempre existiu, e por algum motivo este tipo de comentário é sempre o que irrita mais: o argumento normalizador, de que isto-é-mesmo-assim, sempre houve assédio/ violência/ racismo, etc. Irrita sobretudo por ser incompleto, uma espécie de cobardia intelectual manca. Sempre existiu, ergo? E então? O que é que isso quer dizer? Onde queres chegar com isso? A julgar pela forma como hifenizas os pretéritos, deves ser a primeira geração da tua família a ir à escola; o analfabetismo sempre existiu, achas que isso quer dizer que deve continuar a existir? Sabes que este tipo de agressividade não resulta: que a tentativa de te defenderes da violência de género exercendo violência de classe não é solução. Sabes todos o argumentário contra a hierarquização das lutas, e é realmente verdade que só seremos livres quando formos todos livres. Mas é difícil. Outro comentário diz, ambiguamente, que vergonha. Todos os outros dizem que a culpa foi dela.
– Vais ter de discutir isto tudo com os teus colegas, quando os vires, no lugar onde trabalham e onde o HQ trabalhava. Quer queiras quer não – e isso é importante, porque o consentimento para esta conversa nunca sequer esteve em cima da mesa -, a conversa vai acontecer. Eles não vão acreditar na jornalista e possivelmente vão insultá-la. E tu vais ter de ouvir isto, porque é o teu local de trabalho e, por causa do comportamento do HQ, vais ter de passar a tua hora de almoço, ou o momento em que vais à impressora e passas na mesa do colega, ou quando outro colega passa pelo teu open space para deixar documentos, a discutir comportamentos sexuais apropriados, apesar de teres de trabalhar e estares a trabalhar, e te quereres concentrar em outras coisas importantes, que são o que fazes para ganhar a vida, e não ser distraída, mais do que o costume, com o facto de seres mulher num contexto social e cultural que é cada vez mais abertamente agressivo a mulheres, e teres de ouvir o colega defender-se de uma acusação que ninguém fez mas está lá, e dizer que nem todos os homens, e que não sabemos o que o HQ realmente fez, e que a jornalista que estava demasiado maquilhada não é que estivesse a pedi-las (porque ele sabe que já não se pode dizer «estava a pedi-las», mas pode dizer-se outras coisas que significam o mesmo), mas que podia não ter ido ou podia ter-se vindo embora. Vais ter de ouvir isto tudo e decidir se queres alimentar a discussão.
– Tu também podias não ter ido ter com aquele autor best-seller internacional acompanhá-lo a entrevistas. Mas, como é o teu trabalho, foste. E por isso viste que ele já estava acompanhado, de duas jovens, que apresentou como sendo leitoras, fãs, vencedoras de um concurso promovido por uma das editoras dele e cujo prémio era acompanhá-lo na tour europeia. As jovens tratavam-no pelo primeiro nome, davam muitos risinhos nervosos e olhavam-no embevecidas. Eram fãs. Ele segurava na mão de uma, depois de outra, enquanto faziam conversa. Quando recebeu um telefonema da mulher, saiu da sala para atender. Podias ter vindo embora, só que não podias, porque estás a trabalhar, tinhas de o levar às entrevistas, garantir que tudo corria bem. Quando ficaste sozinha com ele, a certa altura, o autor best-seller disse-te, sic, que ia comer uma daquelas «menininhas» (ele é brasileiro). Depois perguntou-te: «qual das duas é que você fodia?». Não soubeste o que dizer. Respondeste uma inanidade qualquer.
– Isto não é nada, porque todas – todas mesmo – as mulheres que conheces têm histórias iguais ou muito piores. Algumas responderam, fizeram frente, opuseram-se, outras, como tu, ficaram sem saber o que fazer. Ou pior. Por isso a coisa ligeiramente nojenta que te aconteceu e com a qual te sentes mal é realmente o menor dos males que poderia acontecer a uma mulher no trabalho. E isso é verdade, mas porque é que nunca nos passa pela cabeça que isto simplesmente não devia acontecer? Que estes não são males do ofício, mas agressões que não temos, enquanto trabalhadoras, enquanto pessoas, de suportar?
– As notícias replicam-se e o texto mal escrito da jornalista que adora autopromover-se através da polémica é reproduzido em meios de comunicação onde ela possivelmente nunca sonhou estar. O burburinho é ensurdecedor; nas redes sociais, as barricadas habituais, as ditas histéricas contra as autodenominadas vítimas do politicamente correto. Fala-se pouco do meio onde trabalhas, embora haja bastante curiosidade sobre ele. É triste que se fale dele agora por isto. Alguém pergunta porque se estará a falar tanto deste caso, deste post em particular. A evidência da resposta fulmina-te: porque é um caso complexo, porque o post é mal escrito, porque a jornalista está muito maquilhada nas fotos e o HQ é velho frágil, na vida e nas fotos, porque se sabe que a jornalista gosta de se autopromover através da polémica, porque é um caso de assédio em que não houve perda de trabalho ou de estatuto ou de rendimento, em que é discutível se houve sequer violência sexual. Porque é um caso cheio de ambiguidades, incertezas e indefinições, suficientes para banalizar a ideia de que o assédio sexual é em si demasiado complexo para alguma vez se conseguir legislar corretamente sobre ele. É um caso que permite às más consciências consolarem-se com a ideia de que tudo é demasiado complicado para se pensar nisso. É um caso que permite que se continue a não acreditar, a não ligar.
– Porque ainda agora começaste a pensar no que aconteceu e já estás farta do que aconteceu. Quando as pessoas dizem que estão fartas de ouvir falar de assédio, esquecem-se que ninguém está mais farto do que as mulheres que o sofrem ou que podem vir a sofrer. Vocês estão cansados de ouvir histórias nos jornais e nos murais? Nós estamos cansadas de as viver nas nossas vidas. E de, cada vez que uma delas é tornada pública, termos de começar por demonstrar que o assédio existe, sequer. Que aquilo que aconteceu realmente aconteceu; que nós não estávamos a imaginar, a projetar, a interpretar mal. É como se alguém vos roubasse a carteira e vocês tivessem de constantemente lembrar ao polícia e ao juíz que existe o direito à propriedade e que o roubo é um crime. Deixas-te levar nesta conversa imaginária até que percebes que imediatamente te projetaste numa posição de vítima diante de um juiz. Que temos de estar sempre a defender-nos. Que estamos sempre em julgamento. Mesmo que ninguém acredite, mesmo que ninguém ligue.
– Uma amiga que trabalha contigo no mesmo lugar que o HQ usou uma vez uma expressão belíssima para descrever o que sente uma mulher que é assediada. Ela estava a contar a experiência (muito comum a mulheres da vossa geração, dos quarentas) de andar na rua e ter homens a olhar fixamente para o peito dela, o rabo dela. Disse qualquer coisa como: mesmo que elogiem, não podem. Isto é meu. Soubeste imediatamente do que ela estava a falar. Isto é meu – aquilo que todas as mulheres têm de aprender, muito cedo, oh por favor o mais cedo possível, a dizer a si mesmas e aos outros acerca do seu corpo, da sua pessoa. O meu corpo é meu. Pertence-me a mim e não a ti. Não te podes intrometer, não podes mexer, não podes agir sobre ele, sobre mim, sem meu consentimento.
– Essa amiga comentou isto contigo depois de uma conversa à hora de almoço, no local onde trabalham e onde trabalha o HQ. A conversa era sobre a dita lei do piropo, e um homem com quem trabalham, por acaso próximo do HQ, defendia o direito ao piropo. A amiga, e outras colegas, objetaram, explicaram como os ditos piropos são realmente violentos e ofensivos, que em alguns casos são ameaças de violação nem sequer muito disfarçadas. O homem com quem trabalham defende então que é semelhante aos apalpões que os rapazes davam às raparigas no recreio, em jovens. A tua amiga diz que está perfeitamente de acordo, que os piropos são exatamente tão ofensivos e violentos como os apalpões. Ele concorda: nada ofensivos, portanto, diz, sorri. A tua amiga diz que costumava responder com estalos aos apalpões. O homem está a claramente a adorar o que acha ser um jogo: responde, se eu tivesse andado na escola contigo, tinha-me fartado de te apalpar.
Estão a meio do almoço, no lugar onde trabalham.
Vários colegas à mesa; ninguém diz nada.
A tua amiga diz o possível, no momento, e consegue ainda assim dizê-lo num tom gélido: a conversa acaba aqui.
– Os colegas que não acreditam e não ligam, os que dizem sempre que não é bem assim, os que dizem que a jornalista está muito maquilhada e que adora polémica e autopromover-se (e isso é verdade, mas não necessariamente relevante), os que se queixam que já não se pode dizer nada, os que fazem piadinhas sobre pedir-te para trazeres papel para a impressora ser assédio, esses colegas são na maioria boas pessoas. São bons colegas, bons amigos, bons maridos de mulheres, bons pais de filhas, só que não acreditam porque nunca viram, nunca passaram por isso. Mas também não querem saber, não querem ouvir, estão satisfeitos com a relação que têm com as mulheres. São detentores de mulheres e filhas; têm-nas. Defendem as mulheres por isso, porque têm algumas. Como explicar-lhes a urgência de estar do lado das mulheres não por eles serem detentores de mulheres, mas por elas serem pessoas? Porque eles são boas pessoas, e as boas pessoas deviam ser capazes de compreender?
– Outra amiga com quem trabalhas cortou uma vez o cabelo, curto-semi-garçonne. Estavam na cafetaria do lugar onde trabalham e alguns colegas comentaram; o do costume, afabilidade de escritório, fica-te bem, etc. Infelizmente, um dos diretores costuma reparar, e muito, nas mulheres do lugar onde trabalham. Faz comentários elogiosos estranhamente adjetivados. Nesse dia, diz à tua amiga que ela está muito bonita. Que já de si é muito bonita mas que assim fica mesmo bonita. A amiga sorri, diz qualquer coisa bem educada, quer ir-se embora. Ele insiste. Diz que ela parece aquela atriz… aquela atriz. Não se lembra. Tenta descrever. Chega o café que pediram, alguém o chama, afastam-se. Quando a tua amiga volta ao posto de trabalho, tem um e-mail desse diretor. Era esta a atriz que a menina me faz lembrar, diz ele. Anexa a foto de uma conhecida atriz de pornografia soft core dos anos 70. É o poster de um dos filmes mais conhecidos dela, aliás: reclinada numa cadeira de verga, de pernas abertas. A tua amiga apaga o e-mail.
– Encontros com o HQ fazem parte do reportório de desabafos das mulheres com quem trabalhas; ele é conhecido no meio em que trabalham, é respeitado. É um homem inteligente e interessante. É também conhecido como mulherengo, é assim que se chama ao que ele faz. Quando envelhece, passa a ser, diretamente, o velho porco, o velho nojento. Parte de ti acha triste essa designação: pela discriminação de idade, porque ele é de facto velho e frágil, é verdade. Mas uma parte bem maior de ti acha essa designação errada, por ser enganadora: ele é velho e frágil, mas não deixa, por isso, de ser perigoso, de ser abusivo. Todas as mulheres com quem trabalhas têm histórias a contar sobre o HQ: que olha fixamente para os corpos das mulheres e para partes deles, que se aproxima a dois dedos do rosto para falar com elas, que toca sempre – sempre – numa mulher quando fala com ela (no braço, no fundo das costas). A duas mulheres com quem trabalhas, e que são trabalhadoras independentes, fez propostas abertamente sexuais: trabalho contigo e gostava de dormir contigo. Não havia contrapartida profissional explícita – e como determinar se a havia implícita? Essas mulheres, como independentes, não eram propriamente subalternas (este trabalho independente não é tabelado nem sindicalizado, por isso é difícil definir posições), mas uma grande parte da decisão do trabalho a atribuir era tomada por ele. Essas duas mulheres contam: os convites para almoço, as conversas prolongadas, interessantes, sem dúvida (porque o HQ é um homem interessante e inteligente), até chegar o ponto da proposta sexual. Elas rejeitam. A uma delas não volta a ser atribuído trabalho.
– Gostavas muito, muito de parar de pensar nisto. Viver como mulher nesta sociedade, neste momento, é ter esta conversa toda em loop e em rodapé na cabeça o dia todo, enquanto te vestes, quando sais, quando andas pela rua, quando estás no trabalho, quando conversas, quando relaxas com amigos, sempre e sempre, e que a única coisa que pedes é o direito de não teres de pensar nisto tudo, o direito de ocupar o teu espaço no teu local de trabalho naturalmente, espontaneamente, sem toda esta carga.